Os dois tipos

Não existe a necessidade de acreditar-se na história do Almir, especialmente da maneira que o autor a coloca. Sabe-se que os autores são humanos e que em seu ponto de vista já há uma deturpação. Essa história, porém, dentro do possível, pode ser considerada real.

         Foi de uma hora para outra que Almir começou a classificar as pessoas. Todas deviam estar de um lado ou de outro de um Equador imaginário. Sei que é difícil entender assim, mas em exemplos veremos como funcionava sua cabeça.

         Para ele haviam os que lutavam até o fim e os fadados ao fracasso. Não havendo uma alternativa neutra. O avô Alberto era um lutador. O primo Cláudio um derrotado. Se contestavam seu raciocínio dizendo que alguém poderia não ser uma coisa nem outra ele replicava:

_ Você é que não sabe classificar.

         E não era apenas em relação a este critério. Para ele havia os que dormiam adequadamente e os que dormiam errado (e não me perguntem o que isto significa), os que cortavam o cabelo por vaidade e os que faziam por obrigação, os conscientes de seu papel no mundo e os alienados, e assim por diante.

         Não entendíamos da onde vinham os critérios de classificação e nem se havia relação entre eles. E ninguém sabe exatamente quando tudo começou mas de fato aquilo havia se tornado de tal forma uma obsessão para Almir que era difícil vê-lo falando de outra coisa.

Diante da televisão:

 _O Chico Pinheiro é do tipo que leva mais tempo escovando os dentes que se barbeando.

 _Mas quem é do outro tipo?

_O Márcio Canuto.

Em um jogo de futebol:

_ Existe o jogador que chuta bola com raiva e o que chuta com indiferença.

_E não há quem chute com gana?

_Nunca.

Sempre alguém retrucava o Almir. Nós, mais próximos, fazíamos por ironia, por irritação, por começarmos a nos preocupar com sua saúde mental. Outros faziam porque era divertido argumentar ouvir as explicações, ou simplesmente discutir por discutir. Ressalte-se aqui que Almir jamais aceitou a opinião alheia. – “Vocês ainda não entendem” – Dizia. 

Pode parecer engraçado, mas aquilo definitivamente havia se tornado um problema. Ele perdeu o emprego no departamento financeiro de uma multinacional e não conseguia outro, quando perguntávamos se foi bem numa entrevista em outra empresa ele respondia empolgado: – “Acho que sim, o entrevistador é do tipo que come o miolo do abacaxi”

Em relação às namoradas era ainda pior. Por mais que o assunto atraísse de certa forma as mulheres, não conseguia as entreter por muito tempo, para não dizer que se tornava maçante a ponto dele se tornar piada em círculos femininos. Aliás, fizemos vista grossa para não ver que ele já era motivo de piada em vários círculos.

Em casa, porém, ninguém via a menor graça. Mamãe rezava muito e meu pai fingia não se importar, sabíamos que por dentro era o que mais estava assustado. Tio Genésio quis levá-lo ao psiquiatra que tratou o filho de um amigo. Almir rejeitou a hipótese dizendo que havia pessoas que o amavam e pessoas que não o amavam, e que as que o amassem entenderiam que ele não precisava de médicos. Em casa, todos acreditavam que psiquiatra era médico de loucos e não quiseram insistir muito na idéia.

Com o tempo, a preocupação se tornou um fantasma que às vezes incomodava, às vezes passava desapercebido, mas estava sempre presente. Falava-se nele quase o tempo todo e mesmo quando o assunto era outro, parecia mais uma tentativa de evitá-lo. E assim foi-se vivendo.

E como a história acaba? Não acaba. Aceitamos Almir e suas manias e tentamos encontrar um pouco de alegria nas nossas vidas banais, não é assim que todos fazem? Afinal, há os que têm famílias simples e famílias complexas, os que têm irmãos diferentes e os que têm irmãos iguais, os que aceitam seu destino e seguem em frente e os que se deixam abater e, finalmente, os que classificam tudo em duas possibilidades e os que são obrigados a conviver com eles.

6 comentários

  1. Ei, Almir, é você, bem aí, influenciando o narrador no último parágrafo, não é mesmo? Lavagem cerebral? Explicaria a escolha da imagem que adorna o texto.

    Será que não foi o próprio Almir que escreveu o fecho? O que houve com o narrador, então?

      1. Ok, queria deixar o suspense, mas aí vai. O autor realmente assume um pouco da personagem no final do texto, mostrando que a sua racionalidade e a loucura do personagem podem se misturar.

      2. 🙂 Ahá! “Suspeitei desde o princípio”! Obrigada por compartilhar sua engenhosidade… mas não precisa contar, não! Podia ter deixado o suspense no ar! XDDD

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