As Tatuagens Sonoras São Mais Doloridas

leia e ouça: johanna warren || black moss

– Andar de bicicleta? – ele perguntou quase surpreso, quase sorrindo e um tanto feliz – Agora? Quatro da manhã?
Ela olhou com carinho, deu um sorriso delicioso e jogou sobre o seu corpo nu apenas uma camiseta surrada do The Clash. Levantou do colchão, rápida, e disse leve e charmosa – Exato mocinho. Bicicleta. Tem hora para isso? – perguntou.
– Bem, ter não tem, mas você sabe, não sabe? A cidade é violenta, a madrugada é sempre uma armadilha e, pior, está chovendo. Chuva fina, ok, mas está chovendo – ele disse com preguiça, enquanto enchia um copo americano com água gelada.
– Qual o problema? Tem coisas bem piores do que andar de bicicleta sob a chuva, não? E nem está chovendo de verdade. Deixa de ser bobo.
Ele a mediu com ironia no olhar e respondeu direto – E tem coisas bem melhores também, você não acha? – insistiu – Como continuar o que paramos há pouco e tentar criar agora alguma acrobacia sexual selvagem, inédita e deliciosa em cima deste sofá vermelho. Que tal? – provocou.
Ela apenas sorriu e continuou a se vestir.
– Tudo bem, tudo bem, tá bom – ele desistiu – Você cansa com a delícia de apenas ser você e o efeito que isso provoca em mim – ele declarou com amor – Eu te juro, com e por você menina, com e por você, eu sou capaz de qualquer coisa. Prá sempre – frisou com vontade e firmeza.

Ela sorriu feliz, ergueu as sobrancelhas finas e retrucou – Jura? Jura mesmo? Qualquer coisa por mim e por toda a eternidade? – brincou.

Ele a encarou convincente e respondeu direto – Você ainda duvida? Por toda a eternidade. Grave aí na memória.
Ela sorriu ainda mais e disse – Vamos lá, então. Não precisa jurar nada – prosseguiu com o amor estampado em seu rosto. Vestiu um agasalho adicional qualquer sobre a camiseta e pegou as suas chaves. Antes de sair virou para ele e falou – Põe uma camiseta legal. Quero tirar uma foto lá embaixo para lembrar sempre disso – brincou – Vai. Espero por você lá embaixo. Seja rápido.

– Claro. Já vou – ele disse antes de mandar um beijo solto no ar.
E assim foi.




Anos depois. Depois de tanto tempo, ou nem tanto tempo assim, depende da referência, do remédio que se toma ou da dor que se sente, ela ainda lembra. Depois de tanto tempo, depois de incontáveis pedaladas, conversas, momentos, lágrimas, brigas, pazes, canções, livros, encontros e desencontros. Depois de tantas coisas que aconteceram após as quatro horas daquela madrugada, ela ainda lembra. Ela ainda lembra. Como se fosse agora. Mesmo anos depois, ela não consegue esquecer o exato instante em que ele soltou a frase mágica. A frase perfeita. A frase encantada e definitiva, repleta de palavras que ficaram gravadas como tatuagens. Tatuagens sonoras de notas musicais desafinadas de uma cruel e amaldiçoada canção de amor, feita especialmente para assombrá-la por toda a eternidade. Cada vogal uma agulha quente rasgando a memória. Cada sílaba uma dor: “Eu te juro, com e por você menina, com e por você, eu sou capaz de qualquer coisa. Prá sempre”.
Verdade? Ilusão? Palavras entusiasmadas e entorpecidas? Promessas de amor? Juras vãs? Não. Apenas mentiras. Mentiras que são ditas. Apenas ditas. E, quem, porra, precisa delas? Quem, afinal, precisa delas?

Nós, apenas todos nós. Cada um, ao seu tempo, pode ter o desprazer de sentir a dor causada por uma tatuagem sonora. E elas machucam demais. Muito.

E, hoje, ela continua lá, como se o tempo fizesse parte de alguma espécie de dimensão paralela. Uma dimensão própria. O reino das desilusões amorosas. Hoje, ela sente como se continuasse ainda imóvel e ainda lá embaixo na portaria daquele mesmo prédio. Parada. Estática ao lado da sua bicicleta. Esperando. Apenas esperando sob a chuva fraca e fina, segurando um retrato antigo nas mãos que jamais foi jogado fora e rememorando o som cortante de palavras disparadas no ar. Palavras que insistem em dilacerar a sua memória como uma amarga e dolorida tatuagem antiga e gasta.

E ela continua lá, apenas esperando.

Agora, esperando por ninguém.

Apenas esperando por ninguém.

2 comentários

  1. Beto Martins, que texto denso, com muitas chaves de portas a serem abertas. Muito bom (A propósito você me lê do Brasil mesmo?) Abraço

    1. Muito obrigado pelo comentário. Fico feliz. Sim, do Brasil. Estou aqui mesmo, nesta terra que também precisa abrir várias portas rsrsrs

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