Salve-me

leia e ouça: fiona apple || pure imagination

– Então? – ele perguntou, assim que desligou o carro bem em frente ao edifício em que ela morava.
– Chegamos, né? – ela disse, com um ligeiro sorriso nervoso.
– É, chegamos. Fico feliz por você. Não há nada mais agradável do que mergulhar debaixo das cobertas quentes, nesse frio de rachar que está fazendo. Veja os vidros do carro. Estão completamente embaçados.
– Tem razão – ela respondeu – Realmente está um frio de matar. E esses vidros turvos dão uma falsa pista do que estamos fazendo aqui dentro desse carro, não acha?
Ele sorriu da brincadeira e disse – É mesmo. O porteiro vai pensar em toda a sorte de delírios eróticos. Basta ter em mente que com essa violência toda que assola o mundo, somente um carro com duas pessoas absolutamente sedentas por sexo dentro dele, poderia estar estacionado na rua, às quatro e meia da manhã, com os vidros fechados e embaçados. A imaginação é fértil durante a madrugada.
Ela riu e olhou para ele. Carinhosa, disse – Não vou te convidar para subir, tá?
– Tudo bem – ele disse, desviando o olhar para a rua.
– Você não vai ficar chateado? Por favor?
– Não, claro que não. Está tudo bem. A noite foi ótima. O Clube Varsóvia estava especial hoje – ele respondeu agora com o olhar fixo nela.
– Foi mesmo. Adoro aquele lugar. Clube Varsóvia. Tantas coisas vivi lá e, ainda assim, foi uma das melhores noites que tive em muito tempo. Acredite em mim. Bebi, sorri, dancei, me diverti…
– … beijou – ele a interrompeu.
Ela o olhou desconcertada e emendou – Isso. Beijei. 

– Então não foi apenas minha imaginação. Aconteceu mesmo? – ele perguntou com alegria indisfarçável.

Ela o encarou séria e respondeu – Não. Não foi sua imaginação. Aconteceu mesmo.

Ele sorriu com uma expressão mista de ansiedade e medo. Insegurança.

Após alguns segundos, ela continuou – Isso. Beijei. Nos beijamos. E foi muito bom. Admito. Mas preciso pensar um pouco a respeito disso tudo, ok? Não quero errar tudo. De novo. Até ontem você era o melhor amigo do meu ex-namorado. Aliás, até semana passada eu “oficialmente” o namorava. Não quero apressar as coisas. Quero estar certa de que não vamos arrebentar a nossa cara com uma força devastadora e sem volta.
Ele olhou para ela e ela continuou – Então, tudo bem? Não vai pirar na sua imaginação? No que pode ou não acontecer? Ao menos por enquanto?
– Não. Tudo bem. Está tudo bem. Fica tranquila – ele respondeu e brincou – Deixo a imaginação fértil da madrugada para os porteiros solitários e sonolentos.
Ela sorriu tímida e disse – Então eu vou subir para as minhas cobertas quentinhas e você vai para casa dormir como um anjo. Combinado?
– Amanhã você me liga? – ele perguntou.
Ela o olhou com carinho e, após um longo silêncio, apenas disse sem muita firmeza – Pode ser, vamos ver.
Com um nó na garganta, ele viu ela se aproximar e trocaram ainda mais um beijo longo antes de ela sair do carro com um sorriso gentil. Na entrada do prédio ela se virou, acenou e mandou um beijo em sua direção. Ele ficou lá, dentro do veículo, com a cabeça encostada a observar aquela mulher linda desaparecer através da entrada do edifício antigo. Ficou quieto, apenas ouvindo uma antiga canção de amor ou desilusão que estava tocando no rádio, enquanto seus dedos desenhavam no vidro embaçado do carro. Respirou fundo e decidiu ir embora. Com as ideias distantes, não percebeu que havia escrito algo e não apenas desenhado uma figura qualquer sem sentido. Não se deu conta que os seus dedos quentes e cheirando a fumaça de cigarro e vinho tinto haviam deixado estampado no vidro úmido um pedido curto e revelador: Salve-me… 

E, sem sequer ter percebido o que escreveu, ele deu um grito longo, aumentou o volume do rádio, ligou o carro, acelerou e partiu. As letras, as vogais e as consoantes estampadas no vidro? Bem, elas apenas desapareceram. Apenas desapareceram como vários sonhos desaparecem quando o dia nasce e a imaginação dissipa. Simples e dolorido assim. Simples e dolorido assim.

Photo by Vivian Maier ( 1957)

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