Palito De Fósforo

leia e ouça: shoshana bean || gin and cigarettes

Ele estava sentado em um balcão de uma padaria no centro da cidade, perto do seu trabalho. Havia saído tarde aquela noite. Já passava das três horas da manhã. E como era sexta-feira (sábado, né?) e a semana tinha sido mais metal pesado do que gostaria, decretou no seu reinado particular que estava mais do que autorizado a tomar o que bem entendesse. Apenas para sorrir um pouco.

– Você tem fósforo? – ele ouviu a pergunta ecoando atrás dele, vindo de uma pessoa totalmente desconhecida.

Ele virou e a encarou brevemente e respondeu – Não. Não fumo.

Ela olhou para o alto, sem a menor paciência e retrucou – Nem eu, por isso não tenho isqueiro e nem um mero palito de fósforo – concluiu.

Ele afastou os óculos e virou lentamente os seus olhos para cima e para baixo, de forma a observar melhor a moça que havia lhe pedido a porra de um fósforo. Era linda. Absolutamente linda e devia ser bem mais nova que ele (lógico, ele já era velho demais ou mais do que gostaria).

– Não fuma? Então, por que diabos me pediu fogo? – ele disse

– Porque eu estou precisando fumar a porra de um cigarro – ela respondeu, balançando um Marlboro bastante amassado, por entre os seus dedos.

Ele sorriu e emendou – Tá. Ok. Tudo bem, mas se você não fuma, não vejo razão para começar agora.

Ela bufou de leve e falou – Querido, você não é a minha mãe, o meu pai e nem tampouco a minha avó. Então, caso você tenha possibilidade ou saiba fazer algum feitiço para fazer essa porra acender, ótimo. Do contrário, não precisa ficar aí, fazendo qualquer espécie de sermão. Não tô com saco. Aliás, o menor saco.

Ele observou melhor aquela garota. Ela era mesmo bem mais nova do que ele. Devia ter uns vinte e cinco, vinte e sete anos de idade. Era bonita. Linda. Linda mesmo, na verdade, mas estava verdadeiramente destroçada. Um desastre. Devia ter saído de casa com bastante maquiagem, mas a mesma estava toda borrada àquela altura da noite. Dava para perceber as manchas pretas causadas pelas lágrimas. Sim, definitivamente ela chorou bastante aquela noite. Havia uma tristeza inconfundível em seus olhos negros e fundos. E isso ele percebia bem. Sabia como eram as marcas de lágrimas. Ah, e como sabia.

– Não tenho fósforo, mas tenho gin, quer? – ofereceu uma dose.

– Obrigado – ela disse – Ao menos você me ajuda de alguma forma – concluiu antes de tomar o copo dele pelas mãos, rápida, e virar um gole longo.

– De nada – ele disse com ironia observando ela engolir a bebida – Sempre é bom ajudar, não é mesmo? 

– Sem dúvida – ela disse, distante demais, antes de apoiar o copo vazio sobre o balcão – Ainda mais, quando a ajudada sou eu.

– E então, posso saber a razão do início do seu vício? – ele perguntou, com um sorriso.

Ela o fitou fixamente nos olhos e respondeu, seca – Você pode me dizer a razão de sempre temos que nos machucar e quebrar a cara nessa droga de vida? Por que sempre temos de afastar as pessoas que amamos e sempre temos de engolir sapos, tubarões, leões ou seja lá o que for? Me irrita isso, sabe. É difícil. Difícil prá caralho..

– Também não é assim. Concordo com você, mas as coisas não são sempre tão ruins, não é mesmo? Há coisas boas – ele completou, acenando para o garçom colocar mais uma dose em seu copo.

– É? – ela disse irritada – Então você pode me dizer o que há de bom na sua vida, por exemplo? O que há de bom em ser gordo, velho, suado, estar perdendo os cabelos, e estar sentado, em plena madrugada de sexta para sábado, em uma padaria velha do centro da cidade, tomando uma porra de um gin vagabundo, e ainda por cima sozinho, já que se não fosse a idiota aqui, o senhor, um idoso, provavelmente estaria trepando com alguma puta decadente que cobra uma miséria qualquer aqui nesse centro sujo e decadente.

Ele a olhou sério, surpreso com aquela agressividade abrupta, que o atingiu como um soco na cara e tomou outro gole do gin sem nada dizer.

Após alguns instantes ela disse – Desculpa – pediu, quase chorando – Desculpa, desculpa, desculpa… você foi super gentil comigo e aqui estou eu, a imbecil, quebrando aqueles que me estendem a mão. Ainda mais uma vez. Me desculpa – e começou a chorar.

Ele sorriu, deixou de lado tudo o que ela disse e respondeu – Relaxa garota. Relaxa. Você tem razão. Às vezes precisamos escutar coisas que nos façam acordar. Nem sempre é ruim.

– Desculpa, me desculpe – ela repetia baixinho e sem parar, agarrando o seu braço.

– Jorge – ele gritou para o garçom que sim, continuava exausto – Jorge, me arruma um maço de cigarros, uma caixa de fósforos e deixa essa porra de garrafa aqui, por fineza – concluiu com um sorriso.

– Ei – ela interrompeu – Você não fuma!

Ele olhou para ela com um carinho enorme, típico daquele que oferecemos sem pedir nada em troca e disse – Nunca é tarde para começar, não é mesmo? – disse, antes de abraçá-la gentilmente para enfrentarem aquela noite de destilados, cigarros e verdades. Verdades que somente os estranhos podem dizer um ao outro. Somente estranhos. Somente eles.

Photo by Júnior Guimarães

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