O outro eu

Era eu. Um pouco mais baixo. Um pouco mais gordo. Um pouco mais de cabelo. As roupas mais desleixadas.

Sem barba. Ainda que de máscara, senão não seria eu.

Os óculos, parecidos, ainda que estranhei a armação. Vermelha. E se eu estivesse com os meus, estariam embaçados por conta da máscara, ah, a pandemia…

Nos olhamos, nos encaramos (ainda que de máscara), nos medimos.

A postura corporal era parecida, somos duros, sólidos, pesados, apesar de ele parecer mais à vontade, um pouco mais relaxado, um pouco mais carioca.

Estranho encontrar você na porta de uma farmácia na esquina da Barata Ribeiro. Fim de tarde, rua cheia, apesar da pandemia.

Com uma sacola plástica cheia nas mãos. Remédios, a idade, a idade…

Apesar da sacola, ele parecia mais jovem, talvez sem as rugas de preocupação que carrego na testa, no cenho, sem as olheiras pesadas que ficam ainda mais pesadas por trás da máscara, ah, a pandemia, ah, viver a pandemia no Brasil, país com mais de mil e quinhentas mortes por dia.

Ele podia ter comprado filtro solar, desodorante, hidratante, loção pós-barba e não remédios para a pressão, para a diabetes, antiácidos, anti-inflamatórios, antitérmicos, analgésicos, remédios para dormir, remédios para ansiedade, remédios para sinusite, para a tosse, remédios…

Ele me olha talvez como se já soubesse o que estou passando. Tenta me tranquilizar com os olhos. Vai passar, parece dizer. Ou talvez seja eu, me iludindo, o cético, o descrente, o ateu com fé. Eu, ele, nós dois, nos encarando, de máscara, ainda que dê para perceber que falta nele a barba. A barba que carrego há mais de doze anos.

Era eu, saindo da farmácia, sacola cheia, remédios, a idade, a idade. Era eu, relaxado, camiseta com a estampa do livro Fahrenheit 451, do Ray Bradbury, bermuda, chinelo nos pés… Chinelo nos pés, não sou eu, paulistano que sempre usa tênis.

Era eu, apesar de tudo, olhando desanimado, pessimista para o final de tarde, preocupado, mas com fé… amanhã vai ser melhor, amanhã a gente vai fazer melhor. Vai passar, vai melhorar.

Era eu, sacola cheia de remédios, remédios para a tosse, para o peito, para a barriga, para a cabeça, para a dor, viver é sentir dor, mas a outra opção é muito pior, ele parece dizer segurando a sacola com a mão direita.

Espera, eu sou canhoto, gauche na vida. Esquerdopata, esquerdista, esquerdalha, comunista, vai para Cuba.

Mas com essa camiseta do livro do Bradbury, ele, eu não poderia ser diferente, comunista, esquerdista, Lula livre, o que está fazendo em Copacabana, vai para Cuba (já fui, adorei!).

O sinal fechado e os dois esperando no cruzamento, os ônibus passando lotados, os táxis, os táxis de Copacabana, final de dia, esquina da Barata Ribeiro. Esperando abrir, esperando seguir adiante. O sinal começa a piscar.

Ele faz um sinal, um cumprimento sutil, envergonhado como sou, uma piscadela e aproveita que o sinal abriu para seguir adiante.

Eu retribuo o cumprimento, igualmente envergonhado, e também sigo, ainda que olhe para trás. Me perco de vista no meio da multidão de Copacabana.

Procurei outras tardes, outras esquinas de Copacabana, da Barata Ribeiro, farmácias, remédios, com e sem barba, mas nunca mais me encontrei.

René Magritte – Decalcomania (1966)

1 comentário

  1. Excelente escolha de narrativa. Quem sabe o outro eu tenha sido abduzido simbioticamente e não se deixe capturar mais. Quem sabe?

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