Sentei para reler Borges no sábado de manhã. A casa vazia. Renata saiu com João. Foram passear pelo bairro. Buscar um par de botas no sapateiro. Passar na farmácia. No mercado. Ele vai ganhar duas miniaturas de Lego. Fiquei só eu, o Aleph e os gatos (temos dois).
Um dos contos do livro, A Palavra de Deus, traz uma imagem que me toca profundamente: a palavra de Deus nas manchas da pelagem de um jaguar. A imagem por si é linda. O animal, que é apenas vislumbrado por um mago aprisionado com ele numa cela, carrega na pelagem toda a cosmogonia de Borges.
O jaguar ou onça pintada é o terceiro maior felino (depois do tigre e do leão) e o carnívoro mais poderoso das Américas. Sua pelagem combina amarelo, laranja e branco com grandes manchas pretas. E aparece como criatura mítica em várias civilizações americanas, como os olmecas, os maias, os astecas e os tupinambás.
O tigre jaguar de Borges, (sim, estranhamente ele troca de felino no meio do conto) carrega nas costas todo o seu contexto, sua circunstância. Dizer tigre é dizer os tigres que o geraram. Os cervos e tartarugas que ele devorou. O pasto de que se alimentaram os cervos. A terra que foi mãe do pasto. O céu que deu luz à terra.
No nosso contexto, fiquei pensando naquelas lindas fotos do Araquém Alcântara: suas onças do Pantanal, da Amazônia. Queimamos o Pantanal. Queimamos a Amazônia. Queimamos as onças. Queimamos a palavra de Deus.
No nosso contexto, fiquei pensando no discurso do presidente na Assembleia da ONU, quando ele declara acreditar em Deus e que temos a família tradicional como fundamento da civilização. E afirma que liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão (e na liberdade de queimar o Pantanal, a Amazônia, as onças, os jaguares, os tigres).
Pensei também no tigre (esse sim apenas tigre) da biblioteca do Cortázar no seu Bestiário. Cortázar era grande admirador de Borges, apesar das suas diferenças ideológicas. Ambos gostavam de gatos, como outros grandes escritores.
A palavra e o mundo. A linguagem e o mundo. Os escritores e o mundo. E os felinos. Estava focalizando esses aspectos do texto quando minha gata Lina pulou no meu colo, derrubando o livro. Sua pelagem combina laranja, preto e branco. Não traz nela escritura nenhuma, mas carrega muitos significados para mim.

Que texto delicioso!
Puxa, muito obrigado!