Quando eu era um jovencito, nos tempos da camiseta 775 e das jaquetas London Fog, as músicas de amor eram feitas de metáforas e poesia. Era como se os jogos de amor inspirassem jogos de palavras.
Em “Me Liga”, os Paralamas confirmavam isso.
“Jogos de amor são pra se jogar…
… o nosso jogo não tem regra nem juiz
o seu exército invadindo o meu país”.
As pessoas não precisavam ser explícitas, entendiam o que as entrelinhas queriam dizer e as entrelinhas falavam de paixão.
Para descrever um grande amor Caetano dizia – “Dessa coisa que mete medo, pela sua grandeza”, Rita Lee prometia roubar os Anéis de Saturno e Flavio Venturini via nos olhos da amada “Todo Azul do Mar”.
Entre uma Keepcooler e outra, nossos corações batiam apaixonados. Mesmo na música considerada mais popular, as metáforas abundavam.
Gilliard era uma nuvem que passava, Wando era raio, estrela e luar.
Até na hora da cama a abordagem era sutil, como nas baladas eróticas do Roberto Carlos – “Vou Cavalgar por toda noite, por uma estrada colorida, usar seus beijos como açoite e a minha mão mais atrevida”.
Hoje porém, onde abundava a poesia, abunda a bunda.
Passeio no Tiktok e dou de cara com o cantor e compositor Felipe Amorim autor dessa obra:
“Só botada nas cachorras
Botada nas safadinhas
Só nas puta, nas puta, nas putariazinha”
Obviamente, não é tão romântico como o DJ Arraia, que não quer “as puta” e se declara à apenas uma mulher:
“Tô doido pra te comer
Mas antes, vou perguntar, novinha
Posso te empurrar?
Quem sabe a amada seja a não menos apaixonada MC Mirella:
“Eu passei a noite
Pensando em nós
Era tapa na bunda, na cara”
Onde havia imagens de estradas coloridas, nuvens e luar agora só sobrou sentada e tapa na raba.
Fiquei obsoleto, sou dos tempos em que Cazuza desperdiçava seu mel, devargarzinho, flor em flor; do tempo em que na bagunça do coração do Chico Buarque, o sangue errou de veia e se perdeu.
Perdoem-me a rabugice. Não me interessam DJs e suas sentadas e empurradas. O termo “novinha”, tão querido pelo Funk me da nojo. É como houvesse uma sugestão de pedofilia a cada frase.
Por tantos anos a arte tem sido atacada pelos bolsomonstros e jovenklans que ela entrou em coma e no seu lugar veio a rudeza das letras sem inspiração descrevendo nada além do coito despido de amor.
Para usar uma última metáfora, me sinto afundado no lodo, junto com uma geração, torcendo para que Criolo e Emicida tenham forças para nos resgatar.
Excelente texto, Lúcio (como sempre, aliás)! Neste, porém, a pertinência e precisão são superlativas. Que tempos esses em que a excelsa arte da música vem sendo reduzida a um punhado de palavrões ornados com rimas e versos ridículos. É claro que um palavrão pode ter seu lugar numa obra poética, desde que o contexto assim exija, mas reunir um punhado de termos ofensivos e colocar uma melodia não transforma o resultado em música. Já que repetidamente somos surpreendidos por ‘pérolas’ desses DJs, sertanejos universitários, funkeiros e outros ‘artistas’ de sucesso, estou convencido de que a vulgaridade e a pobreza criativa são dois poços sem fundo. Sei que os lucros são altos e que pode ter gente que faz esse tipo de ‘música’ apenas em busca de sucesso e grana, acredito que na grande maioria dos casos essas ‘obras’ são só o fruto de músicos ruins, compositores rasteiros e, enfim, gente medíocre mesmo.
O texto é uma simplificação. Mas serve de alerta. Estamos criando uma geração que não tem contato com a poesia. Não podemos deixar isso acontecer. Como disse no fim. Emicida precisa nos salvar
Aliás, obrigado por ler meus textos e pelos elogios
Bateu saudade de Todo azul do mar, mas o tempo não é de paixão. Rsrs
E tão linda, né? Precisamos deixar a poesia morrer