leia e ouça: current joys || a different age
A agulha desfilava e dançava usando a sua pele como um tablado pálido. Um tablado suave, macio e tão claro. Pálido. Pálido como a sua pele. Pele clara. Transparente. Branca como neve. E ela tinha apenas a certeza de que nada mais seria monocromático a partir dali. Não. Nada mais seria assim. Cinza. A partir daquela decisão, daquela sessão. Nada. Nada mais seria monocromático naquela pele, naquele corpo, naquela alma…. naquela vida. A SUA vida. Não. Nada. Nada mais. Multicolorido seria o palco. A sua música, os seus textos, os desejos, enfim, tudo o que ela quisesse que assim fosse daqui para frente. Vivo. Viva. Como a sua pele. Tela. A pele seria a tela e nada mais seria cinza em sua vida. Nada. E a tinta vermelho vivo que acabava de riscar a sua pele através da agulha fina, apenas reforçou isso e a fez sorrir. Dor. Calor. E a música no estúdio cresceu ao fundo na mesma intensidade. A intensidade da dor. O ruído da mudança. E o desenho na sua pele começou a nascer. Vermelho vivo de paixão misturado ao sangue espalhado sobre a pele. Tinta vermelha. Sangue. Coração. Rosas. Dor que ela deixou para trás. Agora não mais. E ela sorriu enquanto as batidas eletrônicas descompassadas explodiram a caixa de som. Verde? Sim, agora sim. Apropriado. A lembrança de uma vida amanhecida – e que ela não mais reconhecia – desaparecia com a tinta verde que dançava em sua pele. Passado deixado para trás. Ainda bem. Garota de sorte por ter percebido a tempo de poder tentar mudar o que achava que não seria capaz. Amarelo? Sim, agora amarelo. Sol. O sol como a vida que ela sempre evitou, mas agora insistia em querer ver nascer gigante todos os dias dali em diante. Todos os dias. E a sessão avançava. E a música, inexplicável, parecia perceber o ritmo dos desenhos e crescia de forma intensa e repleta de vigor. Como um grito de desabafo. Como a raiva por ela acumulada. A raiva por ter demorado a descobrir que se pode e, mais do que isso, se DEVE sempre tentar ser feliz. Muito feliz. A sessão avançava e as cores em cima de sua pele também. Uma aquarela de sentimentos. Policromática. E ela não pensava em mais nada, apenas nos desenhos que se formavam e que tanto refletiam o seu momento. Distorções e rabiscos de cores quentes que espelhavam o que ela queria a partir de agora. Não mais tons escuros. Não. Definitivamente não. Decidiu que já havia sido tatuada por tons escuros o suficiente na sua vida. Ela queria agora os tons mais quentes. Os tons mais quentes e vibrantes que pudessem retratar o que seu coração sentia, o que seu coração gritava e os seus olhos não mais escondiam de alguém atento. A sua nova vida. Finalmente a sua nova vida. E a canção acalmou. A agulha também. Até a cor azul chegar. O azul não é a cor mais quente. Ele torna tudo mais frio. Mas é a sua cor predileta de sempre. E ela sabia que o azul iria sempre estar lá grudado na sua pele, nas suas entranhas e nas suas memórias. Ela precisava disso, ainda que o azul lembrasse os olhos dele. Frios e azuis como o mar. Gelados e azuis como a noite. E ela não podia jamais deixar de lembrar que o azul é a cor da serenidade. A leveza em renascer. Então, de súbito, ela suspirou e respirou fundo quando a agulha com a cor azul rasgou a sua pele fina e doce e correu sobre ela, numa dança insana e delicada. Um ritual de libertação. Nova vida. Novos sentidos. Novos desejos. Novos. Tudo. E, após coordenados e cuidadosos movimentos sobre a pele, a agulha aquietou. Parou. A música acabou.
A sessão também.
Os desenhos estavam formados. A pintura estava feita em sua pele. Ela olhou, sorriu e admirou o que havia sido feito. Chorou. Chorou muito e por muito tempo. Aliviada, ela secou as lágrimas que rolaram por sua face e sorriu. Desejou apenas ir para casa, sentar-se à frente de seu aparelho de som com uma gorda xícara de chá de jasmim e ouvir e sentir, ainda que com a pele dolorida pelas agulhas, mais uma canção de felicidade e novidade. Leveza. Tudo o que ela queria em sua vida. Tudo o que ela mais queria em sua vida. E, dizem (não sei quem, mas dizem), que para cicatrizar mais rápido a pele recém tatuada, bom mesmo é lavar o local com água morna, usar um sabonete apropriado e esperar. Apenas esperar…
Ela?
Não.
Óbvio.
Ela preferiu usar as próprias lágrimas para cicatrizar a pele e a sua alma, mas agora, apenas com lágrimas de felicidade. Apenas lágrimas de felicidade, pois um novo alguém estava lá… em algum lugar.
Em algum lugar…
e ela sabia disso…
Photo By Sylvie Lancrenon
Muito bom Dal, muito bonito
Valeu Lúcio…