Não mais que oito quilômetros. Ir até o píer no começo da praia, e depois voltar até o posto quatro de onde partira. Quatro quilômetros de ida. Quatro de volta. Inicialmente com o mar à sua direita, contra o vento que dificultava um pouco as pedaladas, mas ao mesmo tempo refrescava o rosto, em mais uma manhã de sol escaldante do verão carioca (que dura praticamente o ano todo, diga-se). A volta, a favor do vento seria ainda mais tranquila.
Os quiosques, com seus nomes clichês de praia, verão, sol, mar, onda, começando a abrir. É dia de semana e ainda cedo para vender cerveja. Mas tem muito mate, refrigerantes, açaí, picolés, tapioca (a nova moda) e água de coco para os clientes matutinos. E os caminhões de gelo que vão parando em fila dupla, para garantir as cervejas geladas dos donos das barracas de praia, dos grandes isopores e dos próprios quiosques. Gelo ruim, sujo, não potável.
Babás negras passeando com bebês loiros em carrinhos de grife que custam mais de dois mil dólares. Algumas poucas mães com seus filhos e filhas usando aquelas camisetas de manga longa com proteção UV, de cores fosforescentes. Casais de idosos caminhando juntos no calçadão. Surfistas já indo embora com suas pranchas, suas roupas de neoprene, seus cabelos descoloridos de parafina, o mar estava meio flat hoje. Mulheres com roupas de ginástica minúsculas cobrindo seus corpos esculturais, trabalhados durante horas diárias em academias de ginásticas e pilates e alimentados a base de ovo cozido e suplementos em pó.
E várias outras bicicletas na ciclovia. De diversos modelos, cores, tamanhos. Algumas profissionais, caríssimas, de fibra de carbono, cheias de sacanagem, outras infantis. Poucas de serviço, com carrinhos acoplados, dos entregadores de água, de gás, da farmácia, da padaria. Alguns pais e mães com cadeirinhas para crianças, algumas na frente sobre o guidão para as menores, e outras sobre a roda de trás, para as maiores – a dele já teve – hoje o filho já é muito grande e pesado. É cinza grafite, discreta. Quadro e rodas grandes, afinal ele é alto. Tem uma cestinha de compras na frente, sempre vazia.
Ele às vezes esquece o capacete de propósito. Mas nesse dia estava usando: faz às vezes de boné que com os óculos escuros, usa para se proteger do sol e esconder um início de calvície. A máscara preta esconde a barba já branca.
O trajeto inicial até o píer corria sem maiores problemas, apesar do vento contrário que diminuía um pouco sua velocidade e pedia mais esforço das suas pernas. Ele havia engordado um pouco e o peso maior sobre as rodas se fazia sentir. O sol estava inclemente, mas ele estava preparado. Já tinha tomado mais de meio litro de água. E planejava tomar uma água de coco na volta.
De repente um grande barulho na avenida, buzinadas histéricas, gritos e xingamentos vinham de uma fila de carros que protestavam contra o motorista já cinquentão do conversível de luxo folgado que parara no meio da pista para esperar uma vaga. O carro, uma Mercedes Cabriolet Classe C de quatro lugares, adesivo com o número 17 no para-choque traseiro e uma loira platinada no banco do passageiro. O guardador de carros tentava em vão acalmar a galera, o cara já vai estacionar… E o cara impassível, ignorando os palavrões, nem uma gota de suor na testa (provavelmente graças a aplicações de botox, que tanto servem para diminuir rugas como eliminar a sudorese).
Ele continua o trajeto e tem que reduzir a velocidade para não atropelar os dois velhos que insistem em caminhar na ciclovia, ignorando o calçadão ao lado. Ambos usam máscaras vagabundas para proteção contra o coronavírus. Ambos usam as máscaras arriadas, sem proteger os narizes grandes, bexiguentos. Ambos do grupo de risco. Conversando alto, risadas, peles bronzeadas, caros tênis de corrida, relógios grandes e chamativos.
Mais adiante é uma criança andando de bicicleta ainda com rodinhas, e o pai ao lado, igualmente sem máscara, tomando quase toda a largura da ciclovia. E ainda olha feio quando ele passa.
Na areia, famílias começando a se instalar. Apesar das restrições de aglomeração. E os barraqueiros lá oferecendo cadeiras e guarda-sóis. Sem falar dos ambulantes: o moço do mate do latão, o sorveteiro, o biscoito Globo, a vendedora de cangas. Todos tentando diminuir seus prejuízos.
Perto do posto dos bombeiros, dois policiais abordam um adolescente negro. O rapaz, de cabelos descoloridos, só de bermuda de nylon e chinelo não traz documentos. Pensa em parar, mas segue adiante. Não é o primeiro nem será o último abuso policial nas praias cariocas.
Quando então ele a enxerga distante, vindo em sua direção. Máscara florida. Óculos escuros. Cabelos soltos ao vento. Camiseta regata branca e shorts jeans desfiados. Fones de ouvido sem fio. A bicicleta dela tem uma cestinha de vime na frente onde um buquê de flores do campo divide espaço com uma sacola de compras. Chama atenção por onde passa. Pedestres viram para admirá-la. Ciclistas diminuem as pedaladas. Parece até protagonista de comercial de absorvente.
Ela vem se aproximando. Ele se prepara para cruzar olhares com ela. Antecipa mentalmente o momento, quase ensaiando sua melhor cara. Dez metros. Oito metros. Sete. Seis. Cinco. Quatro. Três. Quando vem a voz alta grossa, do quiosque ao lado, sotaque carioca carregado: – Alberto, há quanto tempo?! Como vai você, a Marialice, as crianças?
Ela passa por ele e não consegue esconder uma gostosa risada…

Hahaha
Adorei. Exatamente assim.
A riqueza de detalhes desse texto, impressiona, teletransporta // me levou pra casa …
Puxa, que legal… era essa a intenção! FIco feliz.