Meet

Não devia ter exagerado na hora do almoço. Como se não bastassem a batidinha de limão de aperitivo, as quatro latas de cervejas, o torresmo, a linguicinha frita, tinha repetido o prato de feijão. E a feijoada estava do jeito que ele gostava, com tudo que tinha direito, rabo, pé, costelinha, paio, linguiça portuguesa, lombo, a carne seca já ficando meio desfiadinha. Agora o que ele queria era dormir até o dia seguinte. Direito tributário era a última coisa que ele queria discutir com os colegas. Pelo menos podia ficar com o cinto arriado e o botão da calça aberto. Ninguém ia ver. Ele entra na sala e todos já estão lá. Com café para tentar se manter acordado, fica escutando o Álvaro introduzir o caso, mais uma empresa farmacêutica milionária querendo pagar menos impostos, querendo mais isenções fiscais. A feijoada se mexe na sua barriga, barriga que ele sabe que ficou muito maior desde que a pandemia começou. Os sinais são claros, o torresminho e o molho de pimenta fazendo efeito. Sabe que só tem uma forma de se aliviar. Fecha os olhos, relaxa o corpo e solta um peido retumbante. Daqueles que termina assoviando. Volta a olhar para o Álvaro quando repara o olhar surpreso do colega que começa a rir. Só aí percebe que seu microfone estava aberto.

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Sala cheia. Ela finalmente ia comentar um texto da disciplina. Tinha escrito e reescrito seus comentários. Ensaiara. Ia finalmente impressionar seus colegas do doutorado, todos eles cheios de opiniões, citações, inferências, falantes. Ela sempre fora tímida, desde os bancos da escola. Até hoje suava frio, as mãos molhadas, o coração batendo forte. Levantou a mão e esperou a introdução da professora doutora. Assim que é autorizada, desembesta a falar suas ponderações, seu comentário elaborado, inteligente. Ia finalmente impressionar seus colegas do doutorado, todos eles cheios de opiniões, citações, inferências, falantes. Ela que era de poucas palavras. O texto fluía, as palavras saiam redondas, estava se sentindo segura. Nem olhava para os outros. Chegando ao final da sua participação, já esperava os elogios, os desenvolvimentos, as réplicas inteligentes… “Daniela, você pode repetir o que disse!? Ninguém ouviu nada”.

 Seu microfone estava desligado.

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De novo sem sutiã. De novo a regata branca, os mamilos apontando para a câmera. E seu computador deve ser bom, provavelmente um MacBook, a imagem em alta resolução. E todos esses piercings, deve ser louquinha na cama. E tenho certeza que está olhando para mim, não para esses outros colegas, todos com cara de viados. Só tem viado em curso de design. Viado e esquerdista. São para mim esses mamilos apontando para a câmera. Se bem que ela pode gostar de meninas e eu lá no meio da transa, quem sabe outra menina com mamilos apontando para mim, louquinhas por mim, elas só precisam de um macho como eu. É por causa desses peitinhos que continuo dando aulas nessa faculdade de bosta. Tenho que me concentrar, compartilhar a aula de hoje. Vamos discutir aquele texto chave do Adolf Loos. Mas quem consegue com esses mamilos apontando para a câmera?

Mensagem do chat: “Professor, acho que o senhor está compartilhando a janela errada… ou o senhor vai falar sobre a interface do Pornhub na aula?!”

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Estava com um mal pressentimento. Ontem tinha ouvido boatos na comunidade. Ia haver uma operação. Depois da história do arrego e daquele policial encontrado morto no canal, todos estavam com medo. Mas a vida tinha que continuar e ela tinha mais um dia de aulas. Eram poucas as crianças com acesso à internet, que dispunham de um computador velho, de um celular usado para acompanhá-la. Hoje tinham entrado oito alunos na aula online. Meio dispersos. Se já é difícil conseguir atenção dessa molecada na sala, aqui era osso. Mas ela insistia, professora era sua sina, teimosa, acreditava no que fazia. E a aula seguia, quando os primeiros tiros começaram. O barulho foi ficando mais alto e amplificado pelos microfones que os alunos sempre esqueciam de fechar. As crianças assustadas, ela tentando acalmar a turma, “já vai passar, não é nada”, quando repara na janela da Bárbara. A menina está com os olhos vidrados e a camiseta branca da escola (sim, às vezes eles vestem o uniforme, mesmo em casa) começando a se tingir de vermelho. “Professora, acho que a Bárbara travou”, fala Pedro, antes de ela conseguir gritar para todos se jogarem no chão, antes de ela derrubar a sala de aula virtual.

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