leia e ouça: thee sacred souls || it’s our love
– Helô? – uma voz conhecida e inesquecível ecoou atrás dela. Ela virou rápida e confusa, pois a música estava muito alta no Clube Varsóvia naquela noite e ela já havia bebido umas doses a mais da sua vodka predileta. No meio da multidão, ela apenas queria confirmar se realmente quem a havia chamado era mesmo quem ela pensou que fosse ou se estava apenas ouvindo ruídos demais.
– Helô? Não lembra de mim? – o sujeito alto, barba por fazer e nada feio (nada feio, mesmo) repetiu com um sorriso. Ela ficou atônita e surpresa. Muda. Não podia esperar que fosse mesmo ele. Definitivamente não.
– É você, não? A Helô? – o rapaz insistiu.
– Sim – ela respondeu desajeitada, tentando saber o que dizer na sequência – Sim, claro. Cadu, né? Você. Sim. É você. O Cadu… – disse, já parando ao perceber que estava repetindo as palavras, sem a mínima concordância, sem o mínimo contexto. Ele sorriu. Ela também, mas de vergonha e surpresa.
– Então, que coisa não? Nos encontramos assim, de repente, numa festa. Depois de todos esses anos – ele falou simpático.
Ela o observou devagar e tentando disfarçar o sorriso, respondeu – Sim. Muito estranho e inesperado. Venho ao Varsóvia quase todas as noites e nunca te encontrei aqui – observou.
– Sim. É mesmo. Bem, nunca estive nesse Clube mesmo. É aniversário de um amigo e nós nos encontramos aqui. Gostei do lugar. Diferente, vamos dizer assim, mas gostei do lugar. Nunca pensei em te encontrar nessas bandas – disse.
Ela o olhou já sabendo a resposta e, ainda assim, insistiu em perguntar – Ué, como não? Não tenho jeito de “moça” que frequenta os Clubes Varsóvia da vida? Sou, ou era, muito quietinha para você me encontrar em lugares divertidos? – perguntou com ironia e humor.
Ele sorriu, sem jeito da brincadeira e disse – Não, claro que não. É que, bem, não sei. Nos conhecemos há tanto tempo e eu pensei que, bem, sei lá. Faz tempo que não nos encontramos, né? – ele afirmou.
Ela tomou um gole longo da sua bebida e respondeu – Sim. Muito. Desde a formatura, na verdade. O colégio acabou faz tempo e nem lá nós nos falávamos muito, certo? – ela emendou.
Ele entendeu o recado e apenas tentou sorrir.
– Ah, você lembra? Que bom – ele disse.
Como esquecer, né, seu imbecil – ela pensou com raiva antes de soltar – Você não falava comigo, não é mesmo? – ela provocou.
Ele a olhou com surpresa da frase sincera e disse – Não. Eu falava. Bem, é que talvez não falássemos tanto quanto você se lembra ou nem tanto quanto gostaríamos.
– Gostaríamos? – ela ressaltou – Você? Nós? Nós gostaríamos? Você gostaria?
Ele ficou um tanto sem graça e nada disse. Abaixou um pouco a cabeça e procurou o que fazer com as mãos. Estava sem cigarros.
– Estou brincando – ela disse e continuou – Não havia razão para falarmos, não é mesmo? Não lembro de nenhum motivo específico.
Ele assentiu com a cabeça e completou – Sim. Bem, na verdade não. Não sei. Não sei a razão de não nos falarmos tanto. Você era tão quietinha. Tão na sua. A menina, a garota tímida do fundo da sala. Sempre com seus livros e seus cadernos. Não lembro de você querendo ser notada… – ele disse, já arrependido do que disse antes mesmo de terminar a frase – Mas, agora – continuou – Veja você. Está linda. Muito bonita mesmo. Nem parece que o tempo passou para você. Está ótima mesmo. Mesmo com a iluminação horrível deste Clube, dá pra ver o brilho no seu olhar. Fico feliz.
Ela agradeceu com a cabeça, abaixando-a levemente para tirar um pouco os seus cabelos tão claros e lisos que cobriam parte do seu rosto.
– Bem, é isso – ele disse e prosseguiu – Deixe-me apenas cumprimentar um amigo ali perto do bar e já volto. Quero falar com você. Ter seu whatsapp e tal e, quem sabe, recuperar o tempo perdido né? – finalizou com um sorriso. E partiu em direção ao bar, olhando umas duas ou três vezes para trás, de volta para ela. E, enquanto ele sumia entre as pessoas, ela pensou em como havia amado aquele garoto. Deus, como havia desejado ter passado tardes e mais tardes conversando com ele sobre vários… sobre vários nadas, sobre vários tudos. Sobre qualquer coisa. Como ele a hipnotizava sempre que entrava na sala, sempre atrasado, sempre adoravelmente desajeitado. Pensou em cada momento que NÃO teve com ele. Em cada momento que chorou pensando naquele moleque, agora materializado à sua frente. Um Poltergeist estranho e bizarro do passado. Agora, logo agora que ela estava plena, satisfeita, feliz, alegre, contente, confiante, animada e mentirosa, enfim, logo agora que ela estava do jeito que jamais foi ou esteve antes. Justo agora, lá estava ele. Logo agora.
– Quem era o bonitão? – interrompeu Letícia, quebrando os seus pensamentos nostálgicos e a sua particular viagem no tempo.
– Quem? – perguntou, tentando soar desimportante a informação.
Letícia disse – Porra Helô, o cara com quem você estava falando com esse puta sorriso de felicidade no rosto. Quem era? – insistiu.
– Ah, aquele cara? – respondeu – Não sei. Algum babaca que me confundiu com alguém. Não faço a menor ideia.
Letícia sorriu e emendou – Opa, vai lá então, boba. Conversa com ele e pega o contato, sei lá. Dá seu jeito. A noite no Varsóvia pode render, afinal.
– Deixa de ser otária, Letícia. Cansei. Estava te procurando. Quero ir embora – disse.
– Mas já?
– Sim, Lê, agora mesmo. Minha cabeça está doendo demais e este DJ estava indo bem, mas é capaz de parar de tocar essa delícia de Prince e colocar alguma porcaria como Marvin Gaye ou alguma bobagem do tipo. Vamos embora agora. Quem sabe um café no Alfredo não seja uma excelente ideia.
Letícia finalizou sua bebida, deu um breve sorriso e disse – Ok. Vamos. Você manda.
E, assim, elas foram embora.
E, sem olhar para trás enquanto saía pelo Clube Varsóvia, ela apenas pensou em como seria bom se ele não tivesse falado nada. Se ele não lembrasse o seu nome ou mesmo se ele sequer reconhecesse quem era aquela garota que sempre se escondeu, calada e (in)segura, no silêncio do fundo da sala. O esquecível silêncio do fundo da sala.
Photo by Bernard Plossu
poxa … 😦