Conseqüências*

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Brincava com o sol. De manhã. Na praia. A mãe despreocupada jazia em seu banho de lagarto. Adorava a praia e não entendia por quê não se estava sempre lá. Neste momento, acabou de descobrir que a sombra projetada pelo seu corpo fazia desaparecer o reflexo do brilho do sol em caquinhos de vidro misturados a areia. Agora tapava e destapava o sol, eufórica pelo poder divino que tinha de criar brilhos.

_ Mãe, tia! Vêm cá vê o que eu fiz!

Tia Ambrósia, relendo uma revista Claudia que está na casa da praia há pelo menos 6 anos, advertiu:

_ Cuidado menina, não tá vendo que aí tem caco?

Leninha não ligava. Corria em volta dos cacos e acompanhava com os olhos o movimento da sua sombra. E os reflexos de luz acendendo e apagando. E ria, ria muito. Tanto que cansava e eufórica se punha do lado da mãe e da tia para contar suas façanhas.

_ Mãe, um brilho de ouro que foge da sombra!

A mãe com o corpo lânguido não se esforçava por entender:

_ Que ótimo amor, depois conta pro papai.

Não gostava quando a mãe fazia pouco de suas descobertas e saiu em busca de novidades ainda chateada com a falta de impacto de sua última noticia:

_ Eu que fiz – Insistiu.

Nada era mais importante do que a aprovação da mãe. Em torno dela seu mundo se organizava. Aliás, poucas coisas tinham importância. Tudo era imediato e efêmero. Leninha aprendia muito rápido, mas não guardava acontecimentos. Podia dizer que o pai gostava de churrasco, porém, não se lembrava mais do churrasco de quinze dias atrás. E não se importava com isso. Tudo era urgente. Sua vida era uma sucessão de necessidades imediatas e passageiras. Iam-se substituindo umas pelas outras, trazendo experiências e descartando recordações. Era só correr na areia, sentir o vento úmido e o sol suave das primeiras horas manhã e já esquecia os brilhos e a indiferença da mãe. Nunca mais sua vida seria tão livre. Nunca o amanhã e o ontem significariam tão pouco.

Agora cansada, pegava os brinquedos de plástico e remexia a areia protegida pelo guarda-sol. A mãe e a tia pouco falavam e Leninha não se interessava pelo que diziam. Moldando a areia com o balde e a pazinha, ficava totalmente alienada, construindo um mundo só seu. De vez em quando interrompia a conversa das adultas.

_Quando o papai vem?

_Depois de amanhã, amor.

_Demora?

_Um pouquinho – Dizia a mãe, com a mesma saudade da filha.

Agora construía um castelo de princesa. Igual dos livrinhos. Ao olhar de um adulto, não passava de um monte disforme de areia, mas Leninha via torres e muralhas. E via uma linda princesa que pareia com ela mesma, correndo pelos corredores a procura de enfeites para o castelo.

Então começava a correr na praia com seu corpinho miúdo sob olhares vigilantes, porém discretos da mãe e da tia. A praia representava o mistério, um conjunto de possibilidades sem fim. Tudo tinha cor, brilho, movimento, cheiro. Sabia que não podia ir para a água, só chegar pertinho, e na areia molhada via bichinhos. Era um ótimo lugar para achar os adereços.

E foi procurando conchas para enfeitar seu castelo que encontrou uma coisa esquisita e imensamente bonita que parecia uma gelatina azul e roxa. Emudeceu, tamanho o fascínio que aquilo exercia. Nem pensou em contar a ninguém. Lançou a mão instintivamente para saber o que era. A sensação de tocar a substância melequenta foi prazerosa por poucos segundos. Os dedos de Leninha começaram a arder na dor mais aguda que sentira até então. Soltou um grito seguido de um choro histérico.

Aos quarenta anos, em dias nebulosos, a publicitária Lena Andrade ainda se lembra daquela manhã. Talvez seja a única lembrança mais clara dos seus primeiros anos de vida. Lembra do médico que lhe explicou o que era uma água-viva e lembra da mãe a levando à sorveteria para consolá-la. Lembra até que exibia com orgulho o curativo na mão para as crianças que encontrava. Quantos anos tinha? Três, quatro? Precisava perguntar para à mãe. Aqueles dias eram tão distantes. A vida se tornara cheia de significados e explicações prévias, tudo passou a ter início, meio, fim e principalmente, conseqüências.

*Esse é outro dos contos antigos que encontrei nas catacumbas do meu computador e que publico quando a falta de tempo ou a preguiça me impedem de escrever coisa melhor.

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