Ezequiel acordou com o barulho da explosão. Um botijão de gás. Ao abrir a porta de madeira, o calor atingiu-o em cheio. As chamas já começavam a se espalhar e vinham de três lados diferentes.
Tinha que fugir dali com a avó, o mais rápido possível.
E as coisas? As roupas, a geladeira que ainda não tinha acabado de pagar, o fogareiro? O rádio de pilha? Acode e acorda a velha, que não entende o que está acontecendo. Vamos, vamos… ainda tentando juntar alguns pertences em sacolas de mercado, remédios, os óculos da idosa, a carteira de trabalho, o par de sapatos, aquelas fotografias antigas.
– Caralho, cadê sua bolsa, vó?
As ruelas, tortuosas que ele conhecia de olhos fechados, agora tomadas pela fumaça, pelo calor e pelas chamas pareciam um labirinto de rato, intransponível. E ainda tinha que ajudar a avó doente.
– Ajuda aqui, Tonho, a velha não consegue andar direito, pega pelo braço dela, vamos carregá-la. O amigo providencial vinha correndo e parou para ajudá-lo. Conseguiram ir mais rápido, apesar das chamas, cada vez maiores, tudo barraco de madeira, muito lixo, maio seco, não chove faz semanas.
A fumaça aperta e Tonho desiste de ajudar o amigo, medo de morrer sufocado. Sai correndo. Ele continua, não pode deixar a avó, não pode deixar sua verdadeira mãe de criação.
Desde a doença ele sempre cuidou dela, remédios, levava no posto de saúde, dava sopa, banho, até o banheiro, mesmo com ela já não o reconhecendo mais, o neto, o único neto.
Mas sozinho, suado, coberto de fuligem, começa a fraquejar, a fumaça preta sufoca, o calor aumenta. Diminui o passo. Tosse. Tosse. O ar começa a faltar.
Falta pouco, mais umas duas quadras, já consegue ver a rua, as sirenes e luzes dos carros da polícia e dos bombeiros… quando outro botijão explode.
…
Na madrugada do dia 11 de maio de 1969, noite de lua cheia, aconteceu na cidade do Rio de Janeiro o incêndio da favela Praia do Pinto, cujas causas nunca foram esclarecidas pelas autoridades.
Localizada em uma das áreas mais valorizadas da zona sul do Rio, a Praia do Pinto (entre o Leblon e a Lagoa) era meta prioritária nas políticas de remoção de favelas do então Governo Militar.
O incêndio devastador ocorreu em um período de grande tensão, com resistência de moradores, prisão de líderes comunitários e remoções em outras favelas da cidade.
Vivia-se a ditadura, a violência policial e o AI-5 (do final de 68), quando manifestações e protestos ganharam as ruas em quase todas as principais cidades do Brasil. Era o final do governo do marechal Costa e Silva, que se segurou na presidência até o final do ano, para ser substituído pelo general Emílio Garrastazu Médici.
O desastre (como descrito pela imprensa), ou incêndio criminoso (como vivido e descrito pelos moradores) destruiu cerca de mil barracos deixou mais de nove mil pessoas desabrigadas.
Pessoas perderam tudo, móveis, roupas, documentos, fogareiros, geladeiras, rádios de pilha, fotografias, os pouco eletrodomésticos. Diversas crianças e idosos foram parar no Hospital Miguel Couto com queimaduras e intoxicação por conta da fumaça. A velha não sobreviveu.
Famílias desesperadas, gente sem ter para onde ir, gente que foi morar na rua. Algumas das vítimas acabaram por ser transferidas e alojadas em abrigos provisórios da Fundação Leão XIII, para o conjunto Cruzada São Sebastião ou para conjuntos habitacionais da Cidade Alta, Cordovil e principalmente Cidade de Deus (que desde o começo da década de 1960 já recebia pessoas removidas de várias favelas da cidade pela política higienista do então governador Carlos Lacerda, ironicamente cassado pelos militares em 64).
No local onde havia antes a favela, foi só baixarem as cinzas que chegaram caminhões para limpar a área, recolher o lixo e todo o entulho que seria jogado nos lixões clandestinos de Curicica e Nova Iguaçu.
Na sequência novos caminhões, e com eles escavadeiras, tratores e também areia, cimento, empreiteiros, operários (muitos operários), tapumes e cercas. Logo começaram as obras. Escavações, subsolos, fundações e por fim as edificações, tijolos, mais tijolos, lajes, andares. Operários, muitos operários. Alguns deles ex-moradores da favela, como Ezequiel, que sobreviveu ao incêndio.
Os edifícios foram ganhando forma, subindo e fazendo sombra na antes ensolarada região. Um, dois, três, oito – finalmente chegaram a vinte torres. Apartamentos de classe média, prontamente vendidos a oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que logo ao final das obras ocuparam com suas famílias o conjunto de prédios construídos em tempo recorde.
Diziam que as condições de pagamento oferecidas aos novos proprietários foram de pai para filho, ou melhor dizendo, de general para seus fiéis oficiais subordinados.
Com o sucesso da telenovela de Janete Clair que passou na Rede Globo em 1972, os prédios ganharam o apelido pelos quais são conhecidos até hoje: Selva de Pedra.
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